Papa Francisco perseguido por católicos
Ou
Errar no alvo e escolher mal o inimigo?
Escrevi há dias e repito: os tempos mudam, algumas pessoas não.
A frase, escrita com outro intento, tem, todavia, muito a ver com o que se anda a passar pelo mundo num capítulo inesperado: as críticas ao Papa Francisco, talvez num momento em que as críticas aos inimigos do mundo deviam ser mais intensas e os cultores do humanismo – onde se incluem alguns cristãos de boa fé – deviam dar o exemplo e unir-se numa missão decisiva e determinante.
Todas as religiões sofrem os seus fundamentalismos e parece chegada a hora da Igreja Católica ver a pele eriçada dos seus fiéis mais extremistas.
Não é de estranhar esta recente manifestação vinda do âmago de uma cultura que, sendo representante de cristãos, isto é, de seguidores de Cristo, erguida assim sobre o altruísmo do Cristianismo, isto é, dos seguidores do Seu exemplo, foi a mesma que perseguiu cristãos, por exemplo quando enfrentou as (ditas) heresias e criou (para as combater, isto é para combater linhas cristãs não fiéis ao núcleo duro da ideologia dominante) coisas como o Santo Ofício, o Tribunal da Santa Inquisição, grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica, uma linha de conduta assente no pior da natureza humana que promovia a delação, a suspeita, a denúncia, a condenação de inocentes, a tortura, o assassinato, a morte em massa. Que o digam os cátaros, os judeus, os muçulmanos, os cientistas, as mulheres emancipadas, os protestantes, os hesitantes que, não sendo “fiéis” acabavam na fogueira de uma fidelidade acesa.
O termo Inquisição Medieval cobre os tribunais ao longo do século XIV. Pensando na história, a Igreja Católica agiu sempre de forma extrema ao sentir-se ameaçada. No que respeita à Inquisição, começou no século XII em França para combater a propagação do sectarismo religioso, em particular, em relação aos cátaros e valdenses. Entre os outros grupos que foram perseguidos mais tarde contam-se os fraticellis, frades franciscanos que viviam em na Itália e na Provença, que nos séculos XIV e XV, repudiaram a autoridade dos seus superiores e da hierarquia da Igreja, por defenderem as ideias de São Francisco de Assis; os hussitas (seguidores de Jan Hus), movimento reformador e revolucionário que surgiu na Boêmia, no século XV; ou as beguinas (mulheres leigas católicas que viviam onde é hoje a Bélgica; dedicavam-se ao cuidado dos doentes e dos pobres, assim como às tarefas caritativas e piedosas, sem estar contudo vinculadas a regras de clausura nem a votos públicos).
A partir da década de 1250, os inquisidores eram geralmente escolhidos entre os membros da Ordem Dominicana para substituir a prática anterior de utilizar o clero local como juízes.
Mas as mãos sujas de sangue da Igreja, sabemo-lo, estiveram em todos os continentes, deixando rastos de morte e destruição, da Jerusalém medieval, à Guerra dos Trinta Anos da Idade Moderna, à Bósnia contemporânea do século XX, só para dar alguns exemplos.
Em Fevereiro deste ano, dezenas de cartazes anónimos colocados em suportes habituais de publicidade com críticas ao papa Francisco estiveram durante algumas horas colados em várias ruas de Roma (uma fotografia do pontífice e um texto, cuja origem está ainda a ser investigada pela polícia – tanto quanto sabemos e surpreendentemente – que foram retirados pelas autoridades romanas).
Agora, várias dezenas de teólogos, padres e académicos conservadores (62 nomes, para se ser exato) acusaram o Papa Francisco de “espalhar a heresia” por ter manifestado, num texto de 2016, abertura aos católicos divorciados que voltaram a casar.
Numa carta de 25 páginas entregue ao Papa Francisco no mês passado e disponibilizada (no sábado 23 de setembro do ano corrente), à Associated Press, os signatários emitiram uma “correção filial” ao Papa – uma medida que não era usada desde o século XIV. Na Internet há mesmo iniciativas mais ou menos privadas que apelam: Apoie a Correção Filial!
A carta acusa Francisco de propagar sete posições hereges em relação ao casamento, moral e sacramentos com o seu documento de 2016 intitulado “A Alegria do Amor” e subsequentes “atos, palavras e omissões”.
A iniciativa segue outro pedido formalizado por quatro cardeais conservadores que escreveram no ano passado a Francisco a pedirem-lhe para clarificar uma série de “dúvidas” sobre o seu texto de 2016.
A posição do líder da Igreja Católica “motivou cinco perguntas desses quatro cardeais conservadores, que pediram ao Papa esclarecimentos em relação ao conteúdo da exortação apostólica ‘Amoris Laetitia’ (Alegria do Amor), que encoraja os padres a ajudar os casais católicos divorciados e que voltaram a casar a decidir se devem, ou não, receber o sacramento da comunhão.
O Papa Francisco não respondeu a nenhuma destas iniciativas, segundo a Associated Press.
Em dezembro, Francisco reiterou que a decisão de dar a comunhão aos divorciados que voltaram a casar tem o apoio da maioria dos bispos do mundo. Outra novidade foi a autorização a todos os sacerdotes para manterem definitivamente a capacidade de absolverem as mulheres que fizeram um aborto, disposição que devia vigorar apenas durante o ano jubilar da misericórdia, que terminou em novembro do ano passado. O líder da igreja católica também admitiu a possibilidade de ordenação de homens casados, que poderiam trabalhar em regiões remotas onde faltam padres, situação que afeta, por exemplo, o Brasil, um grande país católico e com uma escassez aguda de sacerdotes. Francisco insistiu na necessidade de atribuir postos-chave a mulheres e leigos, no âmbito da reforma do Governo da Igreja Católica, além de ter anunciado a intenção de criar uma comissão para estudar a possibilidade de as mulheres acederem ao diaconato, podendo substituir os padres em alguns sacramentos, como o batismo”. O termo diácono (do grego antigo “ministro”, “servo”, “ajudante”) é aplicado aos clérigos de igrejas de origem cristãs, nas suas várias denominações. A forma feminina chama-se diaconisa.
Não se pode negar que o protesto detinha uma arquitetura geral coerente. Não obstante as motivações políticas dos autores, revela uma interpretação instigante sobre um fenómeno novo – o próprio Papa Francisco e a coerência do seu Pontificado- , servindo de referência aos debates – que se multiplicaram ao longo dos anos e ainda não cessaram – sobre a natureza do caminho erigido pela Igreja Católica, perante um novo patamar de renovação.
Já o disse várias vezes: o Papa Francisco não é um reformador, nem mudou radicalmente a Igreja Católica. É um comunicador, que sabe fazer ressaltar o que o Cristianismo tem de melhor e de mais contagiante. E que interpreta a esperança de muitos que, aliás, dela muito necessitam, indo ao seu encontro, com atos e atitudes certas que milhões de pessoas, mesmo não crentes, reconhecem. É certo que não pode agradar aos radicais conservadores, sendo assim.
Alexandre Honrado
Historiador